Figas no Jornal de Notícias

Figas no Jornal de Notícias
Aquando da entrevista ao JN nos seus 120 anos.

Poder

Pensamento do Conde:
O poder não reside em quem pensa que manda mas sim em quem desobedece.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

OLHA A MALA
PREPARATIVOS
-“Sou sempre eu que tenho de fazer a mala. Não queres saber de nada”
Ele era mais do género de se preocupar com títulos de transporte, horários, datas, dinheiro, cartões, passaportes, previsões meteorológicas, reserva reconfirmada no hotel, etc.
Quanto ao resto, um par de calças, umas cuecas, uma camisa, uns xanatos e pouco mais bastava. Sim, bastava, mas era se sua cara metade não lhe enfiasse mais umas calças, mais uns calções e bermudas, pólos, T-shirts, mais sapatos, mais peúgas, lenços, shampôs, pastas, escovas, protectores solares, escovas, lâminas. Ele ia vendo a mala a engordar, a engordar. Parecia um camelo com a bossa pronta a espichar! Ele percebia bem a lógica da cara metade, que queria malas leves, mas carregava-as como um burro! O marido era um incapacitado, com mais de 90%, devido a uma prótese na anca! Só levava uma pequena bolsa, a tiracolo, e sua bengala preta, tipo pinguelim, que lhe dava estilo.
A preocupação da partida para férias implica uma série de trefas, que muito stress causam! Avisar o padeiro, o vizinho, pagar contas, trancar bem as portas, incluindo a da adega, pôr as jóias em lugar secreto, etc, etc. Ufa! Que trabalheira!
Ela levou a cabeça ao cabeleireiro, para restauro de estilo, ele levou o melão ao barbeiro, para a carecada do costume, a fim de reduzir o atrito nos cem metros bruços! Por pressão da esposa, condescendeu em que uma manicure e podóloga (tratadora de cascos) fosse lá a casa fazer uma revisão unhal! Ficou impressionado com o equipamento da podóloga. Trazia material que mais parecia para grande operação . Como preparação, os pés mergulharam numa larga tina de jacuzzi, para os tornar as unhas molengas e deixarem de ter aquele aspecto de charruas artesanais! Verdade que ele, por vezes, usava-as no jardim!
Cada passada, com pés nus, com unhas a fundo, abria logo uma vala de feijões!
Olhando os pés, ele notava , perfeitamente, que a jovem podóloga, bem desunhada e descascada,, pensava:
-“ Que pés!. Este labrego há muito tempo que não corta as unhas nem tira os calos!
Nem sei se lhas corte ou recomende umas ferraduras”.

Foram longos minutos de cortar unhas, rapar peles, tirar calos, lixar, amaciar e pôr cremes.
Ai, que fino! Ele sentia-se como bailarino pronto para un Pas de Deux. Só faltava pintar as unhas. Azul, de preferência, à Porto! No final, ele nem quis saber da conta que a esposa pagou. Tenha sido uma prenda, mas , pela expressão dela pareceu que lhe tinham arrancado uma unha a sangue frio!
Tudo isto acontecera na véspera. O comboio partia às seis da manhã, mas à meia-noite ainda a cara metade do incapacitado fazia revisão de tudo. Foi então que ele resolveu fazer um brilharet, e disse: –“Ah! Já me esquecia. Falta o canivete suíço”
Ele não era nada sem o canivete. Servia para tudo! Neste caso para cortar chouriços e fazer sandes alentejanas antes do Algarve.
A VIAGEM
Despertador para as cinco da matina. Como tudo estava preparado de véspera, foi só vestir a roupa destinada à viagem, tomar um iogurt, dar umas trincas numas tostas e aguardar por táxi particular. Meia-hora depois, ei-los a caminho de Campanhã. Nos bilhetes lia-se: linha 6, partida 5h47, carruagem 3, lugares 42-44. Dez minutos antes chegou o Alfa. Foi só entrar e, com a ajuda de terceiros, as burras das malas foram colocadas no respectivo compartimento. A partida foi à horinha.
Sentados, turistas, empresários e outros vários, faziam dos lugares guichets, onde, cabeceando pagavam tributos de sono à noite, que ainda os aconchegava, dando como troco a beleza de algumas estrelas, no céu cintilando. O revisor, ao ver os bilhetes de dois em um, ou seja a esposa, olhou a documentação da incapacidade, sorriu! Picou os bilhetes e disse muito obrigado. Por estas e por outras ele apreciava a filosofia das políticas sociais socialistas; ajudar a quem precisa ou não pode. Neste caso, á pala da incapacidade do marido ela viajava de borla!
A primeira paragem foi em Aveiro, onde uma família turca. Olhavam e tornavam a olhar para os lugares. Espantados por não encontrarem os lugares certos. As crianças, iguais em todo o mundo, irrequietas, alaparam-se logo nos lugares disponíveis, os melhores, frente a frente, com mesa entre eles para jogar cartas ou afins!
A viagem corria calmamente. Os alvores da manhã iam raspando nas janelas e entrando, sem pedir licença! Não se sabe quanto a CP paga na zona de Estarreja e Cacia, que mais parece um túnel de desinfecção do material circulante e passageiros. Aquele cheiro a gases, de certeza que garante a imunidade do pessoal contra a gripes de todas as estirpes, mas é preciso ter muito cuidado. Não vá exagerarem na dose e transformarem a zona num Auschswitz para exterminação dos passageiros.
Chatice, para os turcos, foi em Coimbra terem entrado portugas que os expulsaram dos lugares errados. Valeu-lhes a intervenção do incapacitado:
-“Do you understand english?”
-“Yes”
-“Let me see your tickets, please
Olhando os bilhetes, informou:
-“You must go back. Your wagon is number six. Your sets are there”
-“Thank you”
“Not at all”
A situação estava resolvida. A viagem seguiu, sem turcos!
Em Lisboa, nova cena da dança das cadeiras. Um jovem casal inglês, bilhetes em punho, fixou o olhar num casal alemão, entretido a jogar cartas depois de terem comido umas salsichas de Frankfurt.
Algo estava errado. O rapaz alemão, loiro, ar gaiato, certo da sua eficiência, exibiu os bilhetes.
Um casal inglês preparava-se para o assalto aos seus lugares! Chamado o revisor, este resolveu a situação. O casal inglês foi convidado a ir para a carruagem da primeira classe. Foi a vitória da libra sobre o marco. Parece que tinha havido erro na emissão dos bilhetes
Conclusão desta situação: os alemães mostraram assertividade, os ingleses, como sempre, beneficiaram da anarquia portuguesa, demonstrada a duzentos e vinte kms à hora do Alfa!
Depois de Pinhal Novo, última paragem antes de chegar a Tunes, onde aconteceria o transbordo para Lagos; destino final do incapacitado e esposa. O Alfa, principalmente na serra Algarvia, passava de velocidade alfa para velocidade be(s)ta, passando de velocidade de galope para a trote, de cinquenta, sessenta kms hora! No olhar de muitos passageiros notava-se o desejo de: -“Façam o TGV depressa”
Aquelas curvinhas não faziam diferença quando o combóio, a vapor, andava a setenta, oitenta à hora. Mas, actualmente, para um Alfa! Ó faz favor. Façam o TGV, mas depressa.
Assim não vale. É como fazer uma maratona, em bom piso durante trinta kms, mas depois nos últimos dez, obrigarem os corredores a fazer corta-mato!
Para passar o tempo, Oo incapacitado utilizou o canivete suíço no corte dumas rodelas de chouriço, enfiadas num bocado de casqueiro e foi até ao bar beber uma cervejola ao bar.
A esposa preferiu um chá: um Ice-Tea! Finalmente Tunes. Dez minutos de espera para apanhar o recoveiro até Lagos.
OLHA A MALA.
As malas foram, como de costume, colocadas no compartimento a elas destinadas. Os donos controlavam a situação na paragem em cada estação, mas não evitaram que, em Portimão, (onde saíram muitos passageiros) um negro deitasse mão a uma das malas e saísse com o ar mais natural deste mundo, caminhando pelo cais. Valeu a rapidez da reacção da mulher e do incapacitado, que quase ia atropelando tudo e todos para ir em reforço da sua esposa, já em perseguição do larápio e aos gritos de:
-“Ei moço. Larga a mala. Essa mala é minha. Larga a mala”
Atrás dela, o marido incapacitado gritava:
“Ah seu filho da puta. Agarra que é ladrão” enquanto fazia desesperados sinais ao maquinista e ao revisor do comboio para esperarem um pouco. Na aflição da situação e em fracção de segundos lembrou-se do jeito que fazia ter o canivete suíço para trinchar aquele preto duma figa, porém, tal não seria possível ser porque tudo tinha ficado no comboio, que estava ali à espera da rodagem daquela cena dum filme. A bordo do comboio tinha ficado a outra mala, a mochila da esposa, bolsa do incapacitado com os bilhetes. Entretanto, o preto duma figa, perante uma senhora correndo atrás dele, seguida dum manco brandindo uma bengala, achou por bem abandonar a pescaria, logo agarrada e de regresso à carruagem. A arfar, o incapacitado logo tratou de agradecer ao revisor.

-"Parabéns", disse ele, sorrindo, e continuou:
-"Nunca vi um incapacitado, com mais de 90%, correr tanto"

-"Por acaso ando a treinar para os jogos paralímpicos"

Já no apartamento, puxou do canivete suíço e aparou uma unha, esgaçada na perseguição ao preto duma figa. Ele não é nada sem o seu canivete!
As férias foram ótimas.

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